Uma análise intertextual da composição "Fantasia Sobre a Asa Branca" de Hilson Costa

 


Considerado o “hino dos sertanejos”, Asa Branca, baião datado de 1947 e criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, pode soar aos ouvidos dos brasileiros como uma composição sem muito mistério, uma vez que estamos habituados a seu desenho melódico que é antecipado pela nossa memória e, à medida que os ajustes vão dando continuidade à melodia, a figura do nordestino é trazida à tona, e com ela o entendimento de que a composição quer retratar os diversos problemas sociais do homem dessa região como a seca, a fome e o desprezo estatal pelo povo mais humilde, mazela esta simbolizada pela arrulha desesperadora da ave batizada na canção, a pomba-trocaz asa branca. No entanto, além da Fantasia (“forma” de composição musical) de Hilson Costa nos trazer esse cenário, ela também nos transpõe para outras nuances, tentando representar, por meio da linguagem musical, a uma certa odisseia migratória e metafórica da nívea ave que tem a capacidade de percorrer longas distâncias como o homem nordestino.  

Na introdução da Fantasia, o seu caráter apoteótico é revelado por meio do diálogo inicial entre os instrumentos, uma antecipação do que virá na obra, dando lugar a um ritmo andante que traz a ideia de início de uma trajetória, ora evidenciada pelos arranjos melódicos e harmônicos escolhidos pelo arranjador, ora pela imagem formulada no imaginário do ouvinte: a do início de uma caminhada por esse homem representado. Esse drama é retratado de forma fantasiosa, como propõe a composição musical, que tenta, do início ao fim, não seguir um padrão musical estético, mas dar oportunidade para todos os instrumentos solarem em forma de continuidade melódica.

É nítido, no decorrer da Fantasia, a presença de novos elementos incorporados à melodia de Gonzaga e Teixeira, trazendo mistérios ao ouvido habituado, além de tentar representar um cenário robusto por meio dos instrumentos de metais, principalmente dos trombones, que são confrontados pela delicadeza das madeiras. Todo esse cenário é visto metaforicamente com uma retratação dos altos e baixos da vida do “sertanejo”, pois embora a simbologia da ave seja de esperança para que chova, entretanto ela “bateu asas do sertão”, como apresentado na canção.

Por outro lado, a incorporação de elementos dançantes na obra com o uso de instrumentos de percussão, principalmente a zabumba, o pandeiro sinfônico e o triângulo, como apresentado também na “Suíte Nordestina” de José Ursicino da Silva, o "mestre Duda", provoca outro clima na Fantasia, mostrando o lado confiante do “sertanejo” e, assim, tenta evidenciar que nem tudo está perdido, quebrando a ideia preconizada pelo narrador de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, de que o “jagunço” (outro nome dado ao homem “sertanejo”) é "um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores".

Percebe-se que, as mudanças rítmicas, principalmente aquela que dá lugar ao tempo de marcha na obra, são principiadas pelo solo de um instrumento que apresenta o novo motivo para orquestra, e isso é feito com muita expertise pelo autor da composição. Essa quebra de expectativa é evidente também na escrita de romances, principalmente nas narrativas de obras consagradas pela literatura brasileira, as quais apresentam uma diversidade de elementos nos enredos, com presença de personagens, narradores, trama e clímax, por exemplo. Assim, a Fantasia de Hilson Costa eleva o estado de espírito do ouvinte para projetar novas interpretações que rompem com as estruturas da obra original, abrigando, assim, novos significados ao mesclar elementos da música europeia em ritmo sincopado aos elementos dançantes da cultura brasileira.

Por fim, a onomatopeia rouca produzida pela arrulha da pomba-asa-branca é representada na Fantasia por efeitos sonoros produzidos pelo solo de flauta, por meio de ornamentos decorativos que vão embelezando a melodia, dando início à sua parte final que segue apresentando elementos da cultura brasileira de modo mais intenso e uníssono, como se o baião fosse tocado pelo trio tradicional do forró nordestino com a presença mais uma vez da zabumba, do triângulo e da sanfona, esta representada pelas cordas friccionadas da orquestra, assim como se vê na obra "Mourão" de César Guerra-Peixe e Clóvis Pereira. Logo, a “Fantasia Sobre a Asa Branca” do compositor e maestro campomaiorense Hilson Costa é sem dúvida um intertexto capaz de levar o ouvinte mais atento a identificar os aspectos regionais da cultura brasileira e a refletir sobre a vida do homem “sertanejo”.          
 


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